Enquanto as tropas tinham como objetivo único o transporte de cargas de toda a natureza do interior para os centros comerciais e destes para o interior, os tropeiros (…), além de sua função principal, que era também o transporte, executavam várias outras tarefas de interesse para as populações a que estavam ligados, ou por onde passavam. Eles atendiam a toda sorte de encomendas dos conhecidos e amigos, faziam compras, inclusive de medicamentos, transportavam numerários e valores, porque não havia banco no interior, levavam cartas e recados, carregavam malas de correio e traziam as noticias mais fresquinhas dos lugares por onde passavam, inclusive das cotações do café e de outros produtos na Capital, tudo sem cobrar taxa ou comissão, com uma seriedade irrepreensível, daí a confiança de que desfrutavam. (MORAES, 1989, p. 36).
2. Castelo e a atividade tropeira
O município de Castelo ganhou destaque nas décadas iniciais do século XX como um importante centro de tropeiros. Além do intenso fluxo de chegada de tropas; cerca de 100 por dia, equivalendo a aproximadamente 1000 animais, daqui elas partiam para diversas localidades do interior do município e para algumas cidades do sul do Espírito Santo como, por exemplo, Piaçu, Muniz Freire, Afonso Cláudio, Cachoeiro de Itapemirim, além de Vitória.
Fontes bibliográficas e relatos orais evidenciam que ocorreu na região duas modalidades de atividade tropeira: o muladeiro e a tropa de carga A primeira, diz respeito a um tipo específico de tropeiro, oriundo, quase sempre, das Minas Gerais. Eram indivíduos que compravam ou negociavam as mulas ou burros, chucros ou já amansados e, com a expansão da lavoura cafeeira e a necessidade do transporte da produção aos centros comerciais e exportadores, ganharam projeção abastecendo os produtores locais com animais para a tropa de carga ou para as demais atividades do cotidiano. Muitos foram os muladeiros que fizeram fortuna e alguns se fixaram na região de Castelo, tornando-se prósperos comerciantes ou fazendeiros, como foi o caso de Antonio Souza e Silva , popularmente conhecido por Bilu.
Moraes (1989) assim descreveu um pouco da saga de Bilu:
Bilu é de Jeriqui, perto de Viçosa, Minas, e começou a vender muares no Espírito Santo em 1932, trazendo-os das regiões de Conceição de Mato Dentro e Itabira, em lotes de 200 a 300 animais, entrava no Espírito Santo e vendia-os em Iúna, Muniz Freire, Alegre, Castelo, Conceição, Afonso Claudio, Cachoeiro, Alfredo Chaves, Iconha e Rio Novo. De animais arreados chegou a trazer de até 100 de cada vez e, neste caso, vinham carregados de ferramentas, fumo, queijo, etc. tudo para ser comercializado no itinerário que exigia cerca de 30 dias. (p. 58).
A segunda modalidade do tropeirismo em nossas terras foi a Tropa de Carga. Com a chegada dos imigrantes e a expansão da lavoura cafeeira, a demanda por transportes aumentou significativamente. Além de escoar a produção, a tropa também abastecia o interior com produtos que não podiam ser fabricados por aqui e careciam de serem comprados no litoral ou nos centros distribuidores de maior porte. Sal, tecido, fumo, querosene, peixe salgado, ferramentas, calçados, entre outros, eram os principais artigos que os burros traziam para a nossa região.
Muladeiros ou tropeiros de carga não tinham uma vida fácil. As dificuldades encontradas e as necessidades de apoio para o pernoite, para a aquisição de novos suprimentos ou de pasto para o descanso e a alimentação dos animais, fizeram germinar novas localidades e incrementaram a economia de tantas outras já existentes ao longo das extensas trilhas. Segundo o relato de antigos moradores, a comunidade de Santa Luzia, hoje pertencente ao município de Conceição de Castelo, foi um grande centro de comercio dos muladeiros. A Região de Povoação, devido à sua posição estratégica, também foi um importante ponto de apoio às tropas oriundas de Afonso Cláudio, Rio Peixe, São João de Viçosa, Conceição do Castelo, Santa Luzia, Pindobas e Venda Nova. Ali os tropeiros arranchavam pela ultima vez antes de chegar à cidade de Castelo.
Em sua pesquisa sobre as tropas e os tropeiros, Moraes (1989), levantou testemunhos orais, registros e informações de importantes personagens castelenses relacionados à tropa de carga. Dentre eles destacamos:
Antonio Dadalto: tendo se estabelecido como comerciante em 1937, na localidade de Santa Luzia, logo sentiu a necessidade de tropas para transportar o café adquirido de seus clientes, como também levar-lhes os produtos necessários ao seu consumo. Com esse objetivo, no sentido sul fazia jornadas até a Estrela do Norte, perto de Aracuí e para o norte até Piracema, município de Afonso Cláudio, além de trabalhar para várias outras localidades próximas de Santa Luzia. (p. 120).
Avelino Perim (Cebolão): Foi arrieiro das tropas de seu pai, Teciano Perim, na Fazenda dos Alpes, e fazia constantemente o trecho que vai dali a Castelo, num percurso de cerca de 24 quilômetros, transportando sua própria produção, mas também trabalhava a frete, para os vizinhos, na base de 8 mil réis por saco de café, isto no final da década de 30. (p. 106).
João Cola: Ao contrario de seu irmão Camilo, cujo interesse maior era por outras atividades, João era o arrieiro, isto é, o chefe das tropas de seu pai Pedro Cola, da Fazenda Pindobas, que transportavam para Castelo sua produção de café e de lá traziam suprimentos para a casa comercial. Era uma viagem de dois dias, com pouso em povoação. Trabalhou com as tropas de 1930 a 1937, quando os caminhões começaram a chegar à região. (p. 114).
Outro importante estudo sobre o tema foi realizado pelo escritor José Eugenio Vieira, que dotado de um espírito investigativo privilegiado e superando a natural ausência ou dificuldade de acesso aos acervos históricos publicou, no ano de 2004, a obra Castello- origem, emancipação e desenvolvimento 1702-2004. Nela é possível encontrar uma extensa lista de pessoas que estiveram envolvidas na atividade das tropas em Castelo. A abundância de informações nos obriga, apesar de extenso, à sua transcrição na integra :
“Proprietários de “tropas”, conforme livro de registro de veículos”- (Vieira: 2004, p.177)
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Proprietário
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Localidade
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Luíza Altoé |
Alto Caxixe |
Marcello Graciani |
Bella Aurora |
Antonio Perim |
Bella Aurora |
José Baptista Mesquita |
Brejauba |
José Scolforo |
Cachoeirinha de São José |
Dário Salvador |
Campestre |
Joaquim Roberto Bernabé |
Campestre |
Antonio Teixeira Mello |
Castello |
Antonio Luiz de Castro |
Castello |
Benjamin Leitão |
Castello |
Attilio Bertholdi |
Castello |
Ildefonso Santos |
Castello |
Álvaro Cola |
Castello |
Josino Ayres |
Castello |
Francisco Dias da Silva |
Conceição de Castello |
Angelino Bissoli |
Conceição de Castello |
José Venturim |
Conceição de Castello |
João Moreira |
Conceição de Castello |
Honório Catabriga |
Conquista |
Antonio Catabriga |
Conquista |
Atílio Rigo |
Corumbá |
João Borba |
Desengano |
Arão Callegari |
Desengano |
Manoel Almeida Novo |
Estrela do Norte |
Manoel Rodrigues Marão |
Estrela do Norte |
José Marçal de Souza |
Estrela do Norte |
Domicio Lopes da Silva |
Formosa |
Francisco Lopes da Silva |
Formosa |
Ferreira e Vargas |
Lajinha |
José Camporez |
Limoeiro |
Emýdio de Vargas Correa |
Mão Forte |
Luiz Ferreira da Silva |
Mão Forte |
Joaquim Paula Junior |
Mão Forte |
José Roque Gomes |
Mão Forte Frio |
João Vianna |
Montacavallo |
Heitor Turra |
Monte Alverne |
Luiz Andreon |
Monte Alverne |
Victorio Fajolli |
Monte Alverne |
Misael Penna Barbosa |
Montividéo |
Nicolau Senna |
Morro Vênus |
Archimino Campanha |
Mundo Novo |
Olegário Figueiredo |
Patiay |
Augusto Vieira da Cunha |
Patiay |
João Cossetti |
Patrimônio |
Virgilio Piassi |
Pedregulho |
Antonio Travaglia |
Pedregulho |
Pedro Cola |
Pindobas |
Antonio Zanetti |
Pontão |
Aristo Azevedo |
Povoação |
João Caretta |
Povoação |
João Casagrande |
Povoação |
Manoel Almeida Gregório |
Santo André |
Nozedim Mesquita |
Santo André |
Avelino Dias da Silva |
Santo André |
Francisco Gonçalves de Andrade |
Santo André |
Alípio Bastos |
Santo André |
Alandino Pereira |
Santo Antonio |
Thercio A. Pinheiro |
Santo Antonio |
Ezequiel Passamani |
São Christovam |
Santo Colodetti |
São Christovam |
José Ramos |
São Christovam |
Constante Venturim |
São João de Viçosa |
Cyro Bambiro |
São João de Viçosa |
Antonino Pinheiro |
São Manoel |
Nestor Luiz Frossard |
Sem identificação de lugar |
Paschoal Callegari |
Sem identificação de lugar |
Benevenuto Andreon |
Sem identificação de lugar |
Justo Pizzol |
Sem identificação de lugar |
Ângelo Altoé |
Venda Nova |
Domingos Perim |
Venda Nova |
Pedro Zucão |
Venda Nova |
Graciliano Alves da Silva |
Venda Nova |
José Oliveira da Costa |
Viçosinha |
Muitos castelenses talvez não consigam dimensionar a real importância da tropa de carga, no sentido econômico por ela assumido, mas uma parcela significativa da evolução do município aconteceu em função dela.
3. O Cotidiano das tropas:
3.1 A composição das tropas:
A composição de uma tropa não era aleatória. Dentro dela cada animal desempenhava uma função especifica capaz de garantir a harmonia e a eficiência do transporte da carga pelos difíceis caminhos entre os pontos de aquisição e entrega das mercadorias. Em regra, 10 animais formavam uma tropa: havia o burro guia, o contra guia, aqueles que formavam o meio, o burro coice e o contra coice. Um animal em especifico merece destaque nessa organização, a égua madrinha. Era o animal, égua ou mula , que caminhava à frente com sinos ou chocalhos ao pescoço. O barulho emitido guiava os animais que a seguiam em fila indiana.
3.2 Utensílios e ferramentas
A seguir apresentamos a definição de alguns utensílios que faziam parte do cotidiano de uma tropa de burros:
• Bruaca: era uma espécie de bolsa de couro cru utilizada para transporte.
• Cangalha: armação de madeira que se colocava no lombo do burro e em que se equilibrava a carga.
• Ciculateira: cafeteira. Também era chamada de chocolateira ou esculateira.
• Cincerro: tipo de campainha que se colocava no pescoço do animal que servia de guia aos outros.
• Freme: uma espécie de canivete multifuncional. Possuía varias laminas que eram usadas para sangrar os burros e cavalos.
• Holofote: era a lanterna do tropeiro. Feita com um gomo de taquara ou bambu, abarrotado de querosene e com uma torcida de pano velho de algodão.
• Jacá ou balaio: um grande cesto sem tampa utilizado para colocar a carga. Poderia ser trançado com taquaras ou couro de tatu.
• Ligal: tipo de tecido grosso que cobria a carga.
• Marcha: Espaço percorrido pela tropa desde o seu local de origem até o destino final da mercadoria.
• Peitoral: correia que circundava o peito do animal.
• Pito: instrumento de ferro utilizado para apertar o focinho do animal. Era utilizado no momento de colocar a ferradura, sobretudo se fosse bravo ou inquieto.
• Puxavante: instrumento de ferro utilizado para aparar o casco do animal antes de colocar a ferradura.
• Relho: chicote para animais.
• Suador: espécie de almofada. Era colocada debaixo da cangalha para não ferir o lombo do animal. Geralmente era feita de palha.
• Tranca-fio: correias de couro torcido usadas para unir os jacás ou balaios. Evitava o balanço dos cestos durante a viagem.
• Ancorote ou corote: barril pequeno, usado para transporte de aguardente.
3.3 Palavras e expressões
Homens de imensa força e resistência, os tropeiros, ao longo de suas andanças, desenvolveram um linguajar muito peculiar e contribuíram com a língua portuguesa criando algumas palavras e atribuindo novos significados àquelas já existentes. Dentre as muitas destacamos:
• Arranchar: pousar ou descansar no rancho.
• Enervar: armar com taquaras o couro para mantê-lo bem esticado.
• Goitar: lutar entre amigos, empurrar e segurar de brincadeira.
• Manta: tomar prejuízo nos negócios.
• Picaço: burro avermelhado com cabeça e pernas brancas.
• Ralado: animal que manca.
• Rendidura: hérnia comum nos animais de carga.
• Zangar: estragar a carne de porco por falta de sal ou algum atraso na viagem.
Algumas expressões cotidianamente utilizadas pela população também foram cunhadas nas trilhas e picadas das tropas de burro. Eis algumas delas:
“Deixa de ser besta”, “Teimoso como uma mula, “Não seja burro” ou “Fulano é uma besta quadrada”: Apesar de sua importância para a transporte de cargas nas tropas ou para puxar as carroças nas zonas urbanas, havia uma certa dose de desconsideração com os animais, associando-os sempre à pouca inteligência, intransigência ou teimosia.
“Deu com os burros n’agua”: supostamente a história teve origem com dois tropeiros que devido à pressa de entregar a encomenda perderam toda a carga ao tentar cruzar um rio. A expressão está relacionada ao fracasso na execução de uma determinada tarefa.
Cor de burro quando foge: na verdade, o correto é “corre do burro quando foge”. Utilizada para designar os cuidados que os tropeiros deveriam ter quando um burro escapava e tornava-se violento.
Parece um burro empacado Faz alusão à pessoa teimosa, que não quer mudar a sua posição. Era comum o animal emperrar, não querer mais andar, o que dava muito trabalho ao tropeiro.
Pai dos burros: Expressão de origem extremamente controversa. Especula-se que tenha relação com a profissão do pai de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o criador do famoso Dicionário Aurélio. Ele era considerado um exímio fabricante de charretes, preocupado não só com o conforto das pessoas, mas, também, com o bem estar dos quadrúpedes que a puxavam. Daí teria surgido a expressão que vulgarmente passou a designar todos os dicionários do Brasil.
Voto de cabresto: O cabresto é um arreio de corda ou couro que serve para prender o animal à estrebaria ou para conduzir sua marcha. Tal prática era muito comum no início do século XX e evidenciava que o eleitor assim conduzido é considerado como um animal que devia se submeter docilmente à vontade de seu senhor.
Picar a mula: ir embora bem rápido, com muita pressa.
Amarrar o burro na sombra: Momento em que o tropeiro ficava em descanso, na folga.
Estar por cima da carne seca: O tropeiro que tinha esse mantimento estava em condição superior aos demais.
Vir na cola: Significa vir atrás, bem junto. Para atravessar os rios mais profundos, o tropeiro agarrava na “cola” (rabo) do animal.
Estar com o diabo no corpo: Quando um tropeiro estava furioso, com muita raiva.
Dar/tomar uma manta: Levar vantagem/desvantagem em uma negociação. Pratica comum no universo dos tropeiros.
4. A transição: dos burros aos caminhões
No lombo dos burros e na cangalha, os tropeiros carregaram a produção de nossas terras. Em dias de chuva ou de sol, na lama ou na poeira, nas subidas íngremes ou nos grandes vales, lá estavam eles. Mas chegou o progresso, e a velha tropa com sua sinfonia de cincerros foi substituída por um transporte mais lépido e menos penoso aos seus condutores: o caminhão.
Os primeiros veículos motorizados para o transporte de carga chegaram ao Espírito Santo na década de 20 e, gradativamente, começaram a ocupar o lugar das tropas. Entretanto, a dificuldade para a abertura de estradas ainda permitiu que tropeiros e caminhoneiros convivessem lado a lado por cerca de mais 20 anos.
Mas o tempo passou e a marcha inevitável rumo ao desenvolvimento fez com que barulho dos motores dos caminhões substituísse o zurrar dos burros, deixando guardado na memória do povo apenas a lembrança dos dias que não voltam mais.
5. Referencias Bibliográficas:
MORAES, O. Por serras e vales do Espírito Santo: a epopéia das tropas e dos tropeiros. Vitória, 1989.
VIEIRA, J. E. Castelo: origem, emancipação e desenvolvimento – 1702-2004. Vitória: Traço Certo, 2004.
Ajude-nos a recuperar a história dos tropeiros de nosso município. Se você possui fotos, livros ou qualquer tipo de informação importante entre em contato conosco.
Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo – Semcetur
Tel. (28) 3542 6300 ou 3542 8532
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Marcos Balbino
Historiador
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